quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Poesia

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia!
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Alberto Caeiro
Sabedoria

Homenagem a Saramago e ao Ensaio sobre a Cegueira:

Vocês têm as mãos manchadas de sangue e os dedos sujos de crimes;
vocês só sabem contar mentiras, e os seus lábios estão dizendo coisas que não prestam.
Não é para procurar a justiça que vão ao tribunal, e ninguém diz a verdade ao juiz.
Todos confiam em mentiras e falsidades;
inventam maldades e praticam crimes.
Os seus planos perversos são como os ovos de uma cobra venenosa:
quem come os ovos morre, e, se um se quebra,
dele sai outra cobra venenosa.
Os seus planos não prestam para nada;
parecem teias de aranha;
elas não servem para fazer roupa, e ninguém pode se vestir com elas.
Tudo o que vocês fazem é mau, todas as suas ações são criminosas.
Vocês correm para fazer o que é errado e se apressam para matar pessoas inocentes;
vocês pensam somente em maltratar os outros e, por onde passam, deixam a destruição e desgraça.
Não conhecem o caminho da paz, e todas as suas ações são injustas.
Vocês preferem seguir caminhos errados e por isso não tem segurança.
Deus ainda não nos salvou, pois temos pecado, e por isso ele demora em nos socorrer.
Procuramos a luz, mas só encontramos a solidão;
buscamos lugares claros, mas continuamos nas trevas.
Andamos apalpando as paredes como se fôssemos cegos, como se não tivéssemos olhos;
ao meio-dia tropeçamos como se fosse de noite, e, em plena flor da idade, parecemos mortos.
Rugimos como ursos assustados, gememos como pombas;
esperamos a salvação, porém ela demora;
desejamos socorro, mas ela está longe de nós.
A verdade desapareceu, e os que procuram ser honestos são perseguidos.
Sabedoria e Poesia


Há alguns anos, numa grande enchente na Argentina um anônimo escreveu isto
:
COMEÇAR DE NOVO

Eu tinha medo da escuridão

Até que as noites se fizeram longas e sem luz

Eu não resistia ao frio facilmente

Até passar a noite molhado numa laje

Eu tinha medo dos mortos

Até ter que dormir num cemitério

Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires

Até que me deram abrigo e alimento

Eu tinha aversão a Judeus

Até darem remédios aos meus filhos

Eu adorava exibir a minha nova jaqueta

Até dar ela a um garoto com hipotermia

Eu escolhia cuidadosamente a minha comida

Até que tive fome

Eu desconfiava da pele escura

Até que um braço forte me tirou da água

Eu achava que tinha visto muita coisa

Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas

Eu não gostava do cachorro do meu vizinho

Até naquela noite eu o ouvir ganir até se afogar

Eu não lembrava os idosos

Até participar dos resgates

Eu não sabia cozinhar

Até ter na minha frente uma panela com arroz e crianças com fome

Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras

Até ver todas cobertas pelas águas

Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome

Até a gente se tornar todos seres anônimos

Eu não ouvia rádio

Até ser ela que manteve a minha energia

Eu criticava a bagunça dos estudantes

Até que eles, às centenas, me estenderam suas mãos solidárias

Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos

Agora nem tanto

Eu vivia numa comunidade com uma classe política

Mas agora espero que a correnteza tenha levado embora

Eu não lembrava o nome de todos os estados

Agora guardo cada um no coração

Eu não tinha boa memória

Talvez por isso eu não lembre de todo mundo

Mas terei mesmo assim o que me resta de vida para agradecer a todos

Eu não te conhecia

Agora você é meu irmão

Tínhamos um rio

Agora somos parte dele

É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio

Graças a Deus

Vamos começar de novo.

Anônimo